7.10.10

Se eu fosse eu

Deve ser o outono, a preguiça que começa a dar de levantar cedo da cama, a vontade de beber bebidas quentinhas, tomar sopinhas fumegantes e devorar pratões calóricos. Acordei poeta, em marcha lenta; não mole, apenas lenta na velocidade certa de apreciar o que se passa ao meu redor.

Minhas vizinhança, em Thornhill, subúrbio elegante e coladinho de Toronto

Minha gatinha, Vicky, que deve gostar de outono tanto quanto a dona

Procurando inspiração, topei com esse texto da Martha Medeiros e, pronto. Joguei os recortes de jornal e notícias factuais pro lado, e preferi postar um texto de uma das minhas autoras preferidas.


Se eu fosse eu
Clarice Lispector escreveu uma crônica com o título acima para o Jornal do Brasil, em 1968, em que ela falava sobre a grandeza de entrar no nosso território desconhecido, e o que ela faria, caso ela fosse ela mesma. Como tudo que Clarice escrevia, é uma ideia perturbadora saber que nosso comportamento é condicionado e que nem sempre fazemos o que o nosso eu manda. Se eu fosse eu…puxa, dá até medo.

Se eu fosse eu, reagiria. Diria exatamente o que eu penso e sinto quando alguém me agride sem perceber. Deixaria minhas lágrimas rolarem livremente, não regularia o tom de voz, nem pensaria duas vezes antes de bronquear, mesmo correndo o risco de cometer uma injustiça, mesmo que mexicanizasse a cena. Reclamaria em vez de perdoar e esquecer, em vez de deixar o tempo passar a fim de que a amizade resista, em vez de sofrer quieta no meu canto.


Se eu fosse eu, não providenciaria almoço nem jantar, comeria quando tivesse fome, dormiria quando tivesse sono, e isso seria lá pelas nove da noite, quando cai minha chave-geral. Acordaria, então, às cinco, com toda a energia do mundo, para recepcionar o sol com um sorriso mais iluminado que o dele, e caminharia a cidade inteira, até perder o rumo de casa, até encontrar o rumo certo.


Se eu fosse eu, riria abertamente do que acho mais graça: pessoas prepotentes, que pensam saber mais do que os outros, e encorajaria os que pensam que sabem pouco, e sabem tanto. Eu faço isso às vezes, mas não faço sempre, então nem sempre sou eu.


Se eu fosse eu, trocaria todos os meus compromissos profissionais por cinema e livro, livro e cinema. Mas quem os pagaria para mim? Pensando bem, se eu fosse eu, seria como sou: trabalharia, reservando um tempo menor para cinema e livro, livro e cinema, mas pagando-os do meu bolso.


Se eu fosse eu, não evitaria dizer palavrões, não iria em missa de sétimo dia, não fingiria sentir certas emoções que não sinto, nem fingiria não sentir certas raivas que disfarço, certos soluços que engulo.

Seu eu fosse eu, precisaria ser sozinha.


Se eu fosse eu, agiria como gata no cio, diria muito mais sim.


Se eu fosse eu, falaria muito, muito menos.


E menos mal que sou eu na maior parte do dia e da noite, que sou eu mesma quando escrevo e choro, quando rio e sonho, quando ofendo e peço perdão. Sou eu mesma quando acerto e erro, e faço isso no espaço de poucas horas, mal consigo me acompanhar. E ainda bem que nem sempre sou eu. Se eu fosse indecentemente eu, aquele eu que refuta a Bíblia e a primeira comunhão, aquele eu que não organiza a sua trajetória e se deixa levar pela intuição, aquele eu que prescinde de qualquer um, de qualquer sim e não, enlouqueceria, eu.
Martha Medeiros Outubro de 2000
Non-Stop, Crônicas do Cotidiano


Se eu fosse eu, hoje, sentaria no meu jardim, enrolada no cobertor mais quentinho que tenho no armário, e ficaria só curtindo os raios de sol fraquinhos do outono, e o show gratuito de malabarismo, oferecido pelos esquilos...

E você, o que faria se fosse você?



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